domingo, novembro 28, 2004

208. APANHAR O SOL COM JOEIRAS 



A leitura do poema de Ruy Belo lembrou-me uma história engraçada de Artur Correia, A Machadinha, publicada pelas Edições ASA, em 1992.

Sara Neves, 10 anos

207. HOJE O SOL MORREU  



POEMA QUOTIDIANO

É tão depressa noite neste bairro
Nenhum outro porém senhor administrador
goza de tão eficiente serviço de sol
Ainda não há muito ele parecia
domiciliado e residente ao fim da rua
O senhor não calcula todo o dia
que festa de luz proporcionou a todos
Nunca vi e já tenho os meus anos
lavar a gente as mãos no sol como hoje
Donas de casa vieram encher de sol
cântaros alguidares e mais vasos domésticos
Nunca em tantos pés
assim humildemente brilhou
Orientou diz-se até os olhos das crianças
para a escola e pôs reflexos novos
nas míseras vidraças lá do fundo

Há quem diga que o sol foi longe demais
Algum dos pobres desta freguesia
apanhou-o na faca misturou-o no pão
Chegaram a tratá-lo por vizinho
Por este andar... Foi uma autêntica loucura
O astro-rei tornado acessível a todos
ele que ninguém habitualmente saudava
Sempre o mesmo indiferente
espectáculo de luz sobre os nossos cuidados
Íamos vínhamos entrávamos não víamos
aquela persistência rubra. Ousaria
alguém deixar un só daqueles raios
atravessar-lhe a vida iluminar-lhe as penas?

Mas hoje o sol
morreu como qualquer de nós
Ficou tão triste a gente destes sítios
Nunca foi tão depressa noite neste bairro.

Ruy Belo - "Aquele Grande Rio Eufrates" (1961), in Antologia Poética: Ruy Belo, Cidadão de longe e de ninguém, Prefácio e selecção de poemas: Maria Jorge Vilar de Figueiredo, pág. 40-41, Círculo de Leitores, Lisboa, 1999. Fotografia de Maria Teresa Belo.

quarta-feira, novembro 24, 2004

206. CIÊNCIA QUE FOI DE GENTE NOVA 



A leitura do post Bibliofilia do Abrupto fez-me viajar no tempo.
As capas eram diferentes. Mas eu também li "Florence Nightingale", "Madame Curie", "Pasteur"... ah e "As Grandes Invenções", os "Pioneiros da Aviação"...
Mas... hoje, 24 de Novembro, dia do nascimento de Rómulo de Carvalho, quero lembrar outros livros da minha vida: a colecção "Ciência para gente nova".
Quem não se deliciou com os trabalhos de Alexander Graham Bell, quem não voou com os irmãos Montgolfier, quem não sorriu com as aplicações da electricidade estática?
Ah... e as figuras dos cientistas Avogrado, J. J. Berzélius, do bom Mendeleev (parece que só cortava a barba e o cabelo uma vez por ano!).
Quem consegue ler indiferente as páginas 97-99 de "História do Átomo" que relatam a força de uma mãe... a mãe, no caso, de Mendeleev?
Por tudo isto, que nem sempre contribui para a nossa felicidade, obrigado Rómulo de Carvalho!

sábado, novembro 20, 2004

205. PASTORAL 

When I was younger
it was plain to me
I must make something of myself.
Older now
I walk back streets
admiring the houses
of the very poor:
roof out of line with sides
the yards cluttered
with old chicken wire, ashes,
furniture gone wrong
the fences and outhouses
built of barrel-staves
and parts of boxes, all,
if I am fortunate,
smeared a bluish green
that properly weathered
pleases me best
of all colours.

No one
will believe this
of vast import to the nation.


Quando era mais jovem
tinha a certeza
que devia fazer algo da minha vida.
Agora, mais velho,
caminho por vielas
admirando as casas
dos muito pobres:
telhados desengonçados
pátios cheios de
velho arame de capoeira, cinzas,
móveis desconjuntados;
as cercas e os anexos
construídos com aduelas
e tábuas de caixotes, todos,
com alguma sorte,
sujos de um verde-azulado
cuja patina
me agrada mais
que qualquer cor.

Ninguém
acreditará que isto
seja tão importante para a nação.

William Carlos Williams - Antologia Breve, págs. 10-11, Assírio & Alvim, Lisboa, 1995; selecção e tradução de José Agostinho Baptista.


segunda-feira, novembro 15, 2004

204. SER EM RELAÇÃO A OUTREM 

Paris, Outubro de 1967

Se um dia pudermos conversar poderei pôr-te ao corrente do que agora sou. Nós não somos só em relação a nós mas em relação a outrem, e nesse outrem ocupas o primeiro plano. Desde a nossa juventude me tenho definido um pouco em relação a ti, e embora nos vejamos pouco és, de facto, o meu principal interlocutor. Quando te exponho o que penso fico à espera do que de lá vem em resposta, e o que dizes ou escreves, embora eu possa contradizê-lo imediatamente, fica a trabalhar dentro de mim - até dar qualquer fruto, às vezes anos depois.


Excerto de uma carta de António José Saraiva a Óscar Lopes publicada no último JL (n.º 890, de 10 a 23 de Novembro de 2004, pág. 11) e por sua vez retirada da obra Correspondência entre António José Saraiva e Óscar Lopes, organizada e anotada por Leonor Curado Neves e a publicar dentro de dias pela Gradiva.

Aqui fica para os meus amigos...


quinta-feira, novembro 11, 2004

203. A AURA 

Não é de forma alguma um acaso o facto de o retrato ter desempenhado um papel central nos primeiros tempos da fotografia. No culto da recordação dos entes queridos, afastados ou desaparecidos, o valor de culto da imagem encontra o seu último refúgio. Na expressão fugidia de um rosto humano nas fotografias antigas emana pela última vez a aura. É isso que lhes empresta uma beleza melancólica, que não se pode comparar a mais nada.

Walter Benjamim - "A Obra de Arte na Era da sua Reprodução Técnica", in Estéticas do Cinema, org. e prefácio de Eduardo Geada, pág. 24, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1985.

[Este texto de Walter Benjamim é fabuloso; aconselho a sua leitura integral e a sua releitura em momentos especiais da nossa vida].


quarta-feira, novembro 10, 2004

202. RETRATO DO ARTISTA... 

- Vou então ao parque?
- Sim, vamos todos ao parque; tu, eu e Edith, a nossa vizinha.
Vestiu-se cuidadosamente para não a contrariar e cuspiu nas mãos para melhor fazer a risca. Ela parecia não reparar no seu silêncio e na sua limpeza. Tinha as grandes mãos cruzadas e olhava fixamente o broche branco do corpete. Era uma rapariga alta, maciça, com mãos desajeitadas, de dedos como os dos pés e envergadura de homem.
- Já estou apresentável? - perguntou ele.
- Ora que grande conversa! - comentou ela, olhando-o com ternura. Pegou nele e sentou-o em cima da cómoda. - Agora és tão grande como eu.
- Mas não sou tão velho.


Dylan Thomas - "Patrícia, Edith e Arnold" in Retrato do Artista Quando Jovem Cão, págs. 49-50, Edição Livros do Brasil, Lisboa, s/d; tradução de Alfredo Margarido.


segunda-feira, novembro 08, 2004

201. ACHO MAL, POIS CLARO QUE ACHO MAL... 

A Janela Indiscreta acabou...
Os autores dos blogues acham-se no direito de desaparecerem quando bem lhes apetece. E, de facto, é um direito que lhes assiste. A todos? É claro que não.
O blogue "Janela Indiscreta", para o bem e para o mal, já era uma instituição. Uma instituição educativa, cultural e de serviço público. E com elevado número de visitantes fiéis.
Imagine-se acabar a Fundação Calouste Gulbenkian! Não estou a exagerar.
Se há problemas... resolvem-se. Se necessitam de apoio... digam alguma coisa, a blogosfera é muito grande. Se necessitam de uma pausa... tenham-na. Mas acabar assim?
Os autores do blogue terão, verdadeiramente, consciência do papel desempenhado pela "Janela Indiscreta"?


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